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quinta-feira, 22 de março de 2018

Cálculo numérico em R da pressão atmosférica na região da troposfera - método das diferenças finitas

Este artigo destina-se ao estudo numérico do comportamento da pressão na camada troposférica até seu limite superior, a tropopausa. Essa aproximação é válida apenas neste limite, uma vez que tanto na estratosfera quanto na termosfera a temperatura atmosférica não segue o mesmo comportamento aproximadamente linear como na troposfera e na mesosfera. O estudo aqui discutido levará em consideração um decrescimento que é aproximadamente linear na troposfera, o que está de acordo com o que é observado. Eu escolhi este tema para este tópico por ele estar alinhado com uma simulação computacional simples proposta por um professor do Departamento de Física Aplicada, da USP de São Paulo.

A equação termodinâmica de estado para a atmosfera, que é derivada considerando-se apenas ar seco ($\textit{dry air}$) e vapor, uma vez que eles representam 99,96% da concentração de gases da atmosfera. Assim: $P_a = P_d + P_v$, onde $P_d$ é a pressão para o ar seco e $P_v$ é a pressão de vapor. Para gases ideais (uma suposição bastante razoável é a de que os gases na atmosfera comportam-se como ideais), a equação é $Pv = nRT$, que pode ser reescrita em termos da densidade $\rho$ do gás:

$$ P = \frac{m_a}{V}n \frac{R}{m_a}T = \rho R' T $$

onde $n~m_a$ é a massa total, $R^{'} = R/m_a$ é a constante do gás.

Com isso,

$$ P_a = P_d + P_v = \rho_d R^{'}_d T + \rho_v R^{'}_v T = T (\rho_v R^{'}_v + \rho_d R^{'}_d)$$

Considere a constante $\epsilon = R_d/R_v = m_v/m_d = 0.622$, então:

$$P_a = R_d T\left( \rho_d + \frac{\rho_v}{\epsilon} \right),$$

que ainda pode ser reescrita em termos da densidade do ar ($\rho_a = \rho_d + \rho_v$) como:

$$P_a = \rho_a R_d T \left( \frac{\rho_d + \frac{\rho_v}{\epsilon}}{\rho_a} \right) = \rho_a R_d T \left( \frac{(\rho_a - \rho_v)}{\rho_a} + \frac{\rho_v}{\rho_a\epsilon}\right).$$

Neste ponto, define-se a umidade específica, $q_v = \frac{\rho_v}{\rho_a}$, de tal forma que:

$$P_a = \rho_a R_d T \left(1 - q_v + \frac{q_v}{\epsilon}\right) =  \rho_a R_d T \left( 1 + \frac{1-\epsilon}{\epsilon}q_v \right),$$

com $(1-\epsilon)/\epsilon = 0.608$. Considera-se, neste momento, uma nova temperatura, a temperatura virtual $T_v$,

$$T_v = T \left( 1 + \frac{1-\epsilon}{\epsilon}q_v \right),$$

que, conceitualmente, é a temeratura que o ar seco teria caso fosse aquecido pelo calor latente armazenado em $q_v$. Algo que é necessário deixar claro é que as grandezas $\rho$, P e $T$ variam verticalmente na atmosfera, independente da equação de estado. Como o ar não está acelerado na direção vertical, isso significa que sua força peso está em equilíbrio com o gradiente de pressão:

$$PA - (P+dP)A = \rho A g dz \\ A dP = \rho A g dz, \\ \frac{dP}{dz} = \rho g,$$

que é a equação hidrostática. Através do método de diferenças finitas, a equação diferencial anterior pode ser resolvida:

$$ \frac{P_k - P_{k+1}}{z_k - z_k+1} \approx \frac{\rho_k+\rho_{k+1}}{2} \frac{g_k +g_{k+1}}{2}, \\ \Rightarrow P_k \approx P_{k+1} - \rho_k g (\Delta z_k) $$

em que foi considerado que a densidade varia pouco com a altitude, bem como a constante gravitacional g. Esta última equação pode ser facilmente resolvida em R:

 p2 = c(); p2[1] = 101325; #vetor para a pressao;
rho = 1.3; g = 9.8; 
for (z in 1: 1000){
  
  p2[z+1] = p2[1]-rho*g*z
}

atm2 = p2*9.87e-6

par(mar = c(5, 6, 3, 5))
plot(seq(1:length(atm2)),atm2,type='l', xlab='Altitude above sea level (m)',ylab = 'Air pressure (atm)')
par(new=TRUE)

hbar = p2/100;

plot(hbar,type='l',ylab="",xlab = "",xaxt = "n", yaxt = "n");
axis(side=4);
mtext("Air pressure (hPa)", side = 4, line = 3)


Outra consideração para o cálculo da pressão atmosférica, desta vez com maior acurácia, é através da junção entre a equação de estado e a equação hidrostática. Considerando uma atmosféra isoterma, então:

$$ dP = -\rho g dz,\\ P = \rho R_d T_v, \\ \Rightarrow \frac{dP}{P} = - \frac{g}{R_d T_v}dz = -\frac{dz}{H}, $$

onde o fator de escala $H = R_d T_v/g$. Resolvendo a equação anterior:

$$ P(z) = P_0 e^{-(z-z_0)/H}. $$

 p = c(); p[1] = 101325; #vetor para a pressao;
rho = 1.3; g = 9.8; R = 287.04;
Temp = c(); Temp[1] = 300;
for (z in 1: 15000){
  
  p[z+1] = p[1]*exp(-g*z/(R*Temp[1]));
}

atm = p*9.87e-6
dist2 = seq(1:length(atm))/1000;
par(mar = c(5, 6, 3, 5))
plot(dist2,atm,type='l', xlab='Altitude above sea level (Km)',ylab = 'Air pressure (atm)')
par(new=TRUE)

hbar2 = p/100;

plot(hbar2,type='l',ylab="",xlab = "",xaxt = "n", yaxt = "n");
axis(side=4);
mtext("Air pressure (hPa)", side = 4, line = 3)



Apenas a título de curiosidade, mostro abaixo uma comparação entre a solução da equação hidrostática e a solução da nova equação diferencial, considerando atmosféra isotérmica e equação de estado para até 1000 metros acima do nível do mar:

 plot(hbar2[1:1001],type='l', xlab = "Altitude above sea level (m)", ylab = "Air pressure (hPa)" )   
  points(hbar[1:1001],type='l',col='blue')   
  legend(400,1000,c("State and hidrostatic eq.","Hidrostatic equation"), text.col = c('black','blue'))   



Nota-se que a partir de 200 m de altitute, as soluções de ambas as equações começam a divergir entre si. Agora, considero que há variação da temperatura conforme a altitude aumenta. Especificamente, na troposfera a temperatura diminui com o aumento da temperatura de forma aproximadamente linear, ou seja:

$$ T(z) = T_0 - \Gamma z, $$

em que $\Gamma \approx 6.5 K/Km$. Ou seja, a temperatura diminui 6.5 K a cada quilômetro atingido acima do nível do mar. Com essa consideração, a equação diferencial para a pressão fica escrita como:

$$ \frac{dP}{P} = -\frac{g}{R_m T}dz = -\frac{g dz}{R_m(T_0 - \Gamma z)} $$

Ao tomar:

$$ R_m = R (1 - (1-\epsilon)q_v/\epsilon) $$

como uma grandeza constante, então, integrando os termos correspondentes (0 < z' < z  e Po < P' < P ),:

$$ \ln{\left( \frac{P}{P_0} \right)} = \frac{\Gamma g}{R_m T_0 \Gamma}\ln{\left(\left[ \frac{T_0}{\Gamma }\right] - z\right)} \Biggr|_{0}^{z},\\ \Rightarrow \frac{g}{\Gamma R_m} \left[ \ln{\left( \frac{T_0}{\Gamma} - z \right) - \left(\frac{T_0}{\Gamma}  \right)} \right] = \frac{g}{\Gamma R_m} \left[ \ln{\left(\frac{\frac{T_0}{\Gamma}-z}{\frac{T_0}{\Gamma}}\right)} \right], \\ \Rightarrow \ln{\left( \frac{P}{P_0} \right)} = \ln{\left( \frac{T_0 - \Gamma z}{T_0} \right)}\frac{g}{\Gamma R_m} $$

Neste ponto, uso a seguinte propriedade do logaritmo:

$$ \ln{A} = B \ln{C} \Rightarrow A = C^B, $$

ou seja,

$$ P = P_0 \left( 1 - \frac{\Gamma z}{T_0} \right)^{\frac{g}{\Gamma R_m}}. $$

Esta equação pode ser facilmente resolvida numericamente assim como o caso anterior, com a diferença de que incluiremos a variação da temperatura com a altitude:

p3 = c(); p3[1] = 101325; #vetor para a pressao;
g = 9.8; R = 287.04; gamma = 6.5/1000;
Temp = c(); Temp[1] = 300;

for (z in 1: 15000){
  
  p3[z+1] = p3[1]*(1-gamma*z/Temp[1])^(g/(R*gamma));
}

atm3 = p3*9.87e-6
dist = seq(1:length(atm3))/1000;

plot(dist,atm3, type='l', xlab='Altitude above sea level (Km)',ylab = 'Air pressure (atm)')



Uma comparação desta solução com a do caso anterior, para temperatura constante, é:

 plot(atm, type='l',xlab = "Altitude above sea level (Km)", ylab = 'Air pressure (atm)')   
  lines(atm3,col='green')   
  legend(9500,1,c("Constant Temperature","Variable Temperature"), text.col = c('black','green'))   



mostrando que a solução com temperatura variável tende a ser diferente daquela para temperatura constante a partir de, aproximadamente, 5 Km. 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A poderosa universalidade da terceira lei de Kepler


Como esta é a primeira postagem de 2018, eu decidi falar sobre uma aplicação de uma das leis físicas que mais gosto, amplamente discutida até mesmo no ensino médio, e que foi derivada por Johannes Kepler, no século XVII, em Praga (falo um pouco de Kepler aqui). Kepler é, para mim, um herói, no sentido de que nunca abandonou sua ciência, apesar das infinitas adversidades que surgiram em sua vida. Vale a pena mencionar: dois casamentos infelizes, a morte de muitos de seus filhos, mãe acusada de bruxaria, perseguição da Igreja Católica por ele ser protestante e, claro, a pouca amizade entre ele e seu principal mentor, Tycho Brahe. Nada disso foi suficiente para que Kepler desistisse de sua busca pela harmonia do mundo, e todos nós sabemos no que resultou sua persistência: confirmação e ampliação do modelo heliocêntrico de Copérnico, mostrando que a órbita de Marte é elíptica (e, consequentemente, a dos outros planetas), a lei das áreas (planetas em suas órbitas "varrem" áreas iguais em tempos iguais) e a poderosa lei dos períodos. Esta última, em termos matemáticos, diz que:

\begin{equation}
\frac{T^2}{R_{medio}^3} = C,
\label{terceira_lei}
\end{equation}

onde $T$ e $R_{medio}$ são o período e o raio médio de uma dada órbita, e $C$ é uma constante que depende do corpo de maior massa no sistema em questão. Matematicamente, a constante C é derivada através de considerações mecânicas (que podem ser vistas aqui), cujo resultado é $\frac{4\pi^2}{GM_{sol}}$, com $G = 6,6708\times10^{-11}m^3Kg^{-1}s^{-2}$ e $M_{sol} \approx 1,98\times 10^{30} Kg$. A Tabela 1 abaixo calcula a razão entre o quadrado do período e o cubo do raio médio para os planetas do sistema solar. É impressionante a precisão da Terceira Lei de Kepler. Deve-se ressaltar que Kepler fundou as bases da astrofísica, uma vez que derivou leis universais, aplicáveis em qualquer lugar do universo para descrever qualquer tipo de sistema estelar com planetas dançando ao seu redor!

Tabela 1: cálculo da Lei dos Períodos para os planetas do sistema solar. Fonte: mundoeducação.

Em novembro de 2017 uma descoberta bastante intrigante foi anunciada por cientistas da agência espacial européia (ESO), a respeito de um planeta cujas características físico-químicas o colocam como um dos mais prováveis a abrigar vida. Talvez seja importante dizer que "abrigar vida" significa que sua localização está dentro da "zona habitável" de uma estrela. Esta região é, a grosso modo, aquela em que a quantidade de radiação que chega ao planeta é suficiente para manter água em estado líquido e atmosferas com características similares às da Terra.

O planeta descoberto, nomeado Ross 128b, orbita a estrela Ross 128 do tipo anã-vermelha, na constelação de Virgo (Virgem), e juntos localizam-se a "apenas" 11 anos-luz (um ano-luz é o caminho percorrido pela luz a 300 000 Km/s em um ano e corresponde a, aproximadamente, 9 trilhões de quilômetros) da Terra. Esta é uma distância relativamente pequena, uma vez que outros planetas similares à Terra encontrados em estudos anteriores localizam-se a pelo menos 39 anos-luz (mais info aqui). Vale a pena mencionar o planeta Proxima B, o qual orbita a estrela Proxima Centauri, que é a mais próxima da Terra (4 anos-luz). Este planeta localiza-se também na zona habitável de sua estrela, no entanto, ele está tão próximo dela que erupções naturais estelares inundam sua superfície de radiação absolutamente nociva à vida, o que torna Ross 128b ainda mais especial. 

Com isso em mente, eu me propús a pensar em formas de obter alguns parâmetros tanto de Ross 128b a partir das leis de  Kepler. O mínimo de informação a respeito de um sistema planetário que é sabido através de técnicas espectroscópicas de interferência (mais info aqui) são as massas da estrela e do planeta, e seu período de translação. Dessa forma, o raio orbital médio é extraído da equação \ref{terceira_lei} escrevendo-a na seguinte forma:

\begin{equation}
\frac{T_R^2}{R_R^3} = \frac{4\pi^2}{GM_{Ross128}},
\label{kep_ross}
\end{equation}

onde $T_R$ e $R_R$ são o período e o raio orbitais de Ross 128b. Se isolarmos o termo relativo ao raio médio, $R_R$, obtemos:

\begin{equation}
R_R = \left( \frac{T_R^2 G M_{Ross128}}{4\pi^2} \right)^{1/3}.
\label{kepler_ross}
\end{equation}

Eu gostaria de ir um pouco além na equação \ref{kepler_ross} ao expressá-la não em termos da massa de Ross 128, mas do período orbital da Terra e do seu raio orbital médio. Para isso, suponha um parâmetro $\beta$ de proporcionalidade entre a massa de Ross 128 e a massa solar, tal que $M_{Ross128} = \beta M_{sol}$. A terceira lei de Kepler para o planeta Terra é similar à equação \ref{kep_ross}, apenas trocando a massa pela massa solar. Note que, a equação \ref{kepler_ross} pode ser reescrita na seguinte forma:

\begin{equation}
R_R = \left( \frac{T_R^2 G M_{sol}\beta}{4\pi^2} \right)^{1/3},
\end{equation}

Mas,

\begin{equation}
\frac{GM_{sol}}{4\pi^2} = \frac{R_T^3}{T_T^2},
\end{equation}

logo,

\begin{equation}
R_R = \left( \frac{T_R^2\beta}{T_T^2} \right)^{1/3}R_T.
\label{kepler_parametros_ross}
\end{equation}

Repare no quanto a equação \ref{kepler_parametros_ross} é bonita e intrigante. Ela mostra uma relação direta entre o raio orbital de um planeta em conjunto com uma estrela qualquer a 11 anos-luz de distância e dois parâmetros muito bem conhecidos de nosso planeta Terra aqui no sistema solar! Conhecendo o valor de $\beta$ e $T_R$ experimentalmente fica extremamente simples obter um parâmetro orbital absolutamente impressindível para dizer se o planeta encontra-se ou não em uma zona habitável. Em outras palavras, a equação \ref{kepler_parametros_ross} é capaz de apontar se um planeta extraterrestre é ou não possível candidato a abrigar a vida na forma em que nós a conhecemos aqui na Terra! Para o caso do sistema planetário de Ross 128, $\beta = 0,168$ e $T_R \approx 9,86$ dias, o que resulta em um raio orbital médio de, aproximadamente, 7,4 milhões de quilômetros (equivalente a 0,05 UA, onde 1 UA $\approx$ 150 milhões de quilômetros, que é a distância média da Terra ao Sol). Apesar deste raio orbital médio ser extremamente pequeno, anãs-vermelhas têm temperaturas de superfície muito menores que a do Sol ($\approx$3500 K) e irradiam muito menos energia ($\approx$ 10% da luminosidade do sol), o que faz com que sua zona habitável  esteja localizada a curtas distâncias (se comparadas com as do sistema solar em que nós vivemos).

Será que Kepler um dia imaginou que seria possível relacionar grandezas do "nosso" sistema solar, que no final do século XVI era ainda acreditado ser geocêntrico, com parâmetros de outros planetas em outros sistemas solares em pontos inconcebivelmente distantes de nós? Giordano Bruno, pouco antes de ser queimado na fogueira pela inquisição da Igreja Católica, afirmava haver outros planetas orbitando cada uma das estrelas do firmamento, as quais seriam cada uma similares ao nosso sol. Inclusive, esta sua heresia o condenou ao perecimento, Como será que Kepler veria sua lei mais sutil ser empregada para buscar vida no universo? Será que sua harmonia do mundo, na verdade, não seria encontrar um pouco de nós mesmos nos confins do cosmos?

Concepção artística de Ross 128b. Fonte: ESO.

Fontes:

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Defeitos: somos frutos de uma criação imperfeita?

"Conte à sua namorada que você tem defeitos por causa da termodinâmica!"




Foi com essa curiosa frase que um professor de uma das disciplinas que cursei neste semestre (1º de 2016) começou sua aula, intitulada Termodinâmica Estatística dos Defeitos em Sólidos. Nessa aula foram abordados os defeitos Schottky e Frenkel, que tratam do transporte de cargas e íons na rede deformada de um cristal. Esses defeitos são conhecidos como defeitos pontuais na rede. Eles ocorrem em torno de um ponto no qual a deficiência na estrutura do cristal cria regiões atrativas ou repulsivas (diferenças de potencial), que propiciam o transporte de carga e/ou íon na rede e existem sempre que a temperatura do sistema for maior que 0 K. É importante deixar claro que uma rede perfeitamente simétrica e sem imperfeições só existe em teoria e apenas à temperatura 0 K, sendo que tal condição, como será visto, é impossível de ser alcançada.

A frase que deu início à aula diz muito mais que simplesmente justificar relacionamentos complicados, ela diz o porquê de a natureza ser da forma como a vemos. Sim, a natureza é completamente imperfeita e está sempre em transformação! E isso é graças a termodinâmica. Mais especificamente, devido às segunda e terceira leis da termodinâmica. Essas leis lidam com uma das grandezas mais impressionantes e abstratas da física: a entropia. Grosso modo, a entropia ($S$) mede o número de configurações microscópicas correspondentes a um sistema físico, numa determinada condição de temperatura, volume e pressão. O fato de as coisas na natureza apresentarem causalidade (relação temporal entre causa e efeito) é devido exclusivamente à entropia dos processos naturais, que são irreversíveis.

Todo sistema físico busca alcançar estados de estabilidade, conhecidos como estados de equilíbrio, nos quais a entropia é uma grandeza máxima. E essa é, simplesmente, a forma mais direta de se expressar a segunda lei da termodinâmica. Tal assertividade significa que, quando um processo apresenta irreversibilidade temporal (por exemplo, um copo arremessado na parede), a entropia do sistema é uma grandeza que aumenta entre o instante inicial da evolução do sistema até o instante final, em que, de alguma forma, o estado do processo não apresenta mudanças. No caso de processos reversíveis, a terceira lei diz que a diferença de entropia entre dois desses estados estados conectados vai a zero no limite em que $t \rightarrow 0$, o que significa que é impossível alcançar a temperatura 0 K num número finito de passos. Com isso, um sistema em equilíbrio apresenta, por definição, entropia maximizada, o que leva a uma consequência relacionada à energia do sistema, como veremos a seguir.

Considero agora um sistema qualquer submetido a um processo físico irreversível, no qual é sabido, como dito, que a entropia é uma grandeza que, independente da transformação pela qual o sistema passe, sempre aumenta. Isso significa que podemos escrevê-la como:

\begin{equation}
\Delta S_{universo}>0,
\end{equation}

onde $\Delta S_{universo}$ é a variação da entropia total do universo, que caracteriza-se, por exemplo, como um reservatório térmico acoplado de forma arbitrária a um sistema físico qualquer. Com isso,

\begin{eqnarray}
\Delta S_{universo} = \Delta S_{sistema físico}+\Delta S_{reservatório},
\label{entropia total}
\end{eqnarray}

mas,

\begin{equation}
\Delta S_{reservatório} = \frac{-Q}{T_{reservatório}},
\label{entropia reservatorio}
\end{equation}

em que $-Q$ é o calor que o sistema retira do reservatório e $T_{reservatório}$ é a temperatura do reservatório (que consideramos como sendo constante devido ao fato de que o reservatório é infinitamente maior que o sistema considerado).

Pela primeira lei da termodinâmica, temos:

\begin{equation}
Q = \Delta U + p_{0}\Delta V + W^{*},
\label{primeira lei}
\end{equation}

com $\Delta U$ sendo a variação da energia interna, $p_0$ é a pressão, $\Delta V$ é a variaçã0 de volume e $w^{*}$ são todas as outras formas possíveis de trabalho realizado $\textit{pelo}$ sistema, descontado o trabalho mecânico. Dessa forma, fazendo $\ref{primeira lei}$ e $\ref{entropia reservatorio}$ em $\ref{entropia total}$, obtemos o seguinte:

\begin{equation}
\Delta S_{uni} = \Delta S_{sis}-\frac{Q}{T_{res}} = \frac{1}{T_{res}} \left[ T_{res}\Delta S_{sis}- (\Delta U + p_{0}\Delta V + W^{*}) \right].
\end{equation}

É importante notar que:

\begin{eqnarray}
\Delta (T_{res}S_{sis}) = T_{res}\Delta S_{sis}, T_{res} = cte, \nonumber \\
\Delta (p_{0}V) = p_{0}\Delta V, p_{0}=cte,
\end{eqnarray}

Portanto,

\begin{eqnarray}
\Delta (T_{res}S_{sis} - U - p_{0}V) = T_{res}\Delta S_{sis} - \Delta U -p_{0}\Delta V \nonumber \\ \Rightarrow \Delta S_{uni} =-\frac{1}{T_{res}}(\Delta G + W^{*}).
\end{eqnarray}

Onde define-se $G = U - TS +pV$ como a energia livre de Gibbs (que será explorada mais adiante). Como $\Delta S_{uni} \geq 0$ (pela segunda lei da termodinâmica), então:

\begin{eqnarray}
-\frac{1}{T_{res}}(\Delta G + W^{*} \geq 0) \nonumber \\
\Rightarrow -\Delta G \geq W^{*},
\end{eqnarray}

Se as condições forem tais que $W^{*}=0$, logo:

\begin{equation}
\Delta G \leq 0.
\end{equation}

Esse resultado mostra que devido ao aumento da entropia no processo físico a energia livre de Gibbs será menor (ou igual) a zero. Ou seja, um sistema que busca equilíbrio, na realidade, busca condições nas quais a entropia é maximizada e a energia livre de Gibbs é minimizada.

Com isso, voltando ao caso dos defeitos na rede, os estados de menor energia e máxima entropia não são, necessariamente, aqueles de maior perfeição nos arranjos atômicos da rede, mas sim aqueles em que a estrutura está em equilíbrio termodinâmico. É justamente por isso que um arranjo cristalino perfeito existe apenas à 0 K e em nenhuma outra temperatura, já que esta propicia o desordenamento dos átomos e, portanto, a criação de defeitos.

Será que, além das redes cristalinas, faria sentido nos perguntarmos se a natureza busca, a todo momento, otimizar-se através dos processos termodinâmicos? Ou melhor, será que a natureza é como a conhecemos, que a existência de humanos e outros animais, plantas e demais seres vivos é devido ao fato de que a entropia em processos irreversíveis é maximizada e a energia é minimizada? Não é meu intuito fazer demonstrações matemáticas mais extensas do que as que apresentei. O que eu quero é levantar hipóteses e refletir sobre elas.

Kepler foi um dos grandes cientistas que acreditou que simetrias fossem a grande resposta para todos os mistérios do universo. Mas ele não era exceção. Seu antecessor, Copérnico, postulou um sistema de mundo em que o Sol seria o centro do universo, e não mais a Terra, e todos os planetas descreveriam órbitas circulares ao seu redor.

Essas ideias levaram Kepler a escrever seu primeiro livro, Mysterium Cosmographicum, em que através da geometria buscou uma explicação matemática absolutamente simétrica através de razões entre órbitas dos planetas e sólidos tridimensionais para a posição de cada planeta em cada região do universo. Por exemplo, mercúrio teria uma posição geométrica representada por um octaedro enquanto que a Terra seria representada por um dodecaedro. Mais detalhes podem ser vistos aqui.


Anos mais tarde, essa visão de universo perfeito, simétrico e regido por construções geométricas seria abandonada pelo próprio Kepler através de seus trabalhos com Tycho Brahe, de forma que houve uma literal mudança de paradigma! Afinal, antes acreditava-se que os planetas (inclusive o Sol) descreviam órbitas circulares através de epiciplos e equantes ao redor da Terra. Estes eram conceitos construídos 2000 anos antes de Kepler por Aristóteles, um pitagório, que tinha seu devir nas perfeições e simetrias dos números refletidos na natureza. Não é de se espantar que seus pensamentos duraram dois mil anos... (para maiores detalhes desta e de outras histórias recomendo fortemente a leitura dos seguintes livros: "Criação Imperfeita" e "A Harmonia do Mundo", ambos do Marcelo Gleiser).

Com a quebra deste paradigma científico, a Terra passava a não ser mais o centro do universo nem as órbitas dos planetas seriam descritas por órbitas circulares. Temos um sol como o centro do universo conhecido até então e as órbitas são modeladas por elipses! Engraçado que dizer isso parece ser tão simples quanto 2+2 = 4, entretanto não é simples assim.

Elipses são as curvas bidimensionais mais próximas de um círculo, no limite em que seus semieixos são iguais. A forma elíptica das órbitas é devida às leis de conservação de momento angular e interações gravitacionais entre os planetas entre si entre eles e o Sol (esse problema é conhecido em Física como problema de três ou mais corpos, e sua solução analítica encontra-se em aberto, há apenas soluções numérico-computacionais) e essas características físicas de um sistema como o planetário está diretamente relacionado com a termodinâmica, com o máximo de entropia e mínimo de energia de Gibbs! Ou seja, não há mais simetria, e aparentemente a termodinâmica também tem papel fundamental neste ponto! Agora, conhecia-se o fato de que os planetas varrem áreas iguais em tempos iguais e que o período de revolução de um planeta é proporcional ao cubo de sua distância média ao Sol. Imagine só o esforço de Kepler que dispunha apenas de ferramentas geométricas e medidas extremamente precisas derivando essas leis! É um esforço que merece ser celebrado!


Com isso, todo o pensamento científico ficou abalado pelo fato de que nem o universo era perfeito! Claro, a Terra também não é perfeitamente simétrica, nenhum planeta é. Galáxias não são perfeitamente simétricas! O fato de haver mais matéria que antimatéria no universo é claramente uma demonstração de assimetria física (existem trabalhos teóricos maravilhosos que exploram este ponto).

A própria termodinâmica tem dificuldades em extrair respostas de sistemas fora do equilíbrio. Um dos poucos trabalhos que lidam com essa condição foi desenvolvido por Jarzynski, que derivou uma desigualdade (que leva seu nome), e que consegue extrair valores para a energia de Gibbs (que é uma propriedade do sistema em equilíbrio) de um processo fora do equilíbrio. A relação entre entropia e energia de Gibbs é incrivelmente importante em praticamente todos os processos naturais, até mesmo os biológicos. Exemplos destes são a distribuição de atividades por comunidades de insetos como abelhas, formigas e cupins e há quem diga que até mesmo a teoria da evolução é, na verdade, uma teoria termodinâmica, em que as populações mais bem relacionadas com o meio são aquelas em que as mutações gênicas, que são aleatórias, seguem apenas a regra da maximização da entropia para minimização da energia...

Enfim, gosto de pensar na natureza como sendo um laboratório fantástico, dotado de características intrínsecas ímpares, regidas por leis ainda mais espetaculares, as quais, vez ou outra, podem ser vislumbradas por conjuntos de cientistas de mentes astutas e persistentes, que navegam diariamente no oceano do desconhecido na esperança de encontrar uma minúscula porção de terra, cujos tesouros são informações inesperadas e surpreendentes. Imperfeições são desafios máximos em praticamente todas as áreas do conhecimento, tanto exato quanto biológico ou humano. O fato é que a natureza é, por si e para si, um sistema otimizado, que privilegia (na grande maioria das vezes) os defeitos em detrimento das belezas da simetria, e neste ponto está uma das belezas mais fundamentais do universo: independente do sistema, sua forma configuracional definitiva será aquela em que a termodinâmica ditará a regra do jogo.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Será que podemos pensar nas nossas vivências de forma análoga aos processos físicos?


É interessante pensar nos acontecimentos da vida como se cada um deles fosse representado por uma densidade de probabilidade em Mecânica Quântica. Supondo que a função de onda que descreve cada um desses momentos seja normalizada e composta por uma superposição infinita de autoestados, cada autovalor associado a um autoestado da função de onda representa uma escolha possível para um determinado acontecimento, e isso significa que existe uma probabilidade de "realização" associada a cada um desses autovalores. Em outras palavras, cada acontecimento da vida apresenta um conjunto de conteúdo não nulo repleto de possibilidades! Quando você toma uma atitude específica, a função de onda associada a um determinado momento de sua vida foi colapsada, privilegiando apenas um autovalor de um autoestado específico, e, como cada atitude define um caráter físico concreto a essa função de onda, aquilo que não aconteceu torna-se apenas hipóteses com determinadas probabilidades de ocorrência antes do colapso. E o processo é irreversível, feliz ou infelizmente.


Essa irreversibilidade da dinâmica física está associada diretamente à termodinâmica através do conceito de entropia. Grosso modo, a entropia estuda a irreversibilidade de um sistema físico. Seu conceito mais fundamental provém da teoria de probabilidades de variáveis estocásticas, que busca saber qual a chance de, dada uma configuração inicial de um sistema, ser possível afirmar que num determinado instante de tempo o sistema retornará exatamente às suas condições iniciais. Nos processos em que isso ocorre, diz-se que o sistema é reversível e a entropia, neste caso, tem valor nulo. Nos casos reais, a entropia é sempre maior que zero, o que significa que o processo é completamente irreversível, mesmo que, probabilisticamente, haja uma chance de o sistema retornar ao seu estado inicial (diz-se que essa probabilidade existe para evolução do sistema em tempos infinitos).

Um exemplo bastante simples que retrata um caso real de irreversibilidade é o seguinte: existem duas pessoas, sendo que pelo menos uma delas tem conhecimento básico de Física, localizadas em pontos extremos de uma sala fechada, e uma delas abre um vidro de perfume Chanel Nº 5. Passado um tempo, a pessoa localizada no extremo oposto sentirá o aroma e inferirá que as moléculas do perfume se difundiram pelo ambiente, até que algumas delas penetrassem em seu nariz. Essa mesma pessoa relacionará este processo com o da expansão livre de um gás, no qual uma vez ocorrida a expansão, não se consegue mais, por compressão apenas, levar o sistema ao estado inicial sem violar a condição de que o sistema deve permanecer adiabaticamente isolado. Talvez a única forma de fazer o sistema retornar às suas condições iniciais (de temperatura, pressão, volume e posição das moléculas) seria “remover” a entropia extra criada no processo, o que exige a saída de energia do sistema na forma de calor. É claro que em casos reais, como o do perfume, o sistema não está adiabaticamente isolado e muito menos suscetível a uma compressão. E isso leva àquela pessoa na sala a considerar que houve aumento da entropia, e que esse aumento é intrínseco a sistemas físicos complexos (é possível provar matematicamente que a entropia do Universo como um todo aumenta!).

É possível relacionar esse aumento da entropia com o colapso da função de onda em Mecânica Quântica, ao pensar em eventos passados e futuros. Vamos supor que um determinado experimento já foi executado, e que associado a ele exista uma função de onda, a qual permite saber, por exemplo, a evolução espacial de uma partícula num dado tempo. Antes de haver o colapso da função de onda, ou seja, antes de um observador ir até o experimento e detectar a posição da partícula, havia inúmeras probabilidades dessa partícula ser localizada em todos os pontos do espaço no qual ela está confinada, supondo que não haja posição preferencial em que a densidade de probabilidade para a localização da partícula seja maior em determinada região que em outras (isso pode ser visto, por exemplo, em uma caixa quadrada e homogênea). Esse instante, conhecido como estado inicial do sistema, está referido ao passado do experimento. O instante posterior ao colapso da função de onda (descoberta da posição da partícula) é o que denomino de instante futuro. Da transição entre esses dois instantes de “momento temporal” (de passado para futuro), a entropia do sistema aumentou, mas não com a evolução do tempo contínuo, mas sim com a ação do observador em descobrir a posição da partícula na caixa! E esse processo é irreversível! E com essa descoberta, ou melhor, com a solução da equação de Schroedinger que descreve esse processo dadas as condições iniciais, o observador possui em mãos uma ferramenta que permite descrever a evolução espacial da partícula no tempo com apenas um autovetor associado a essa função de onda.


Um experimento que ilustra o que eu disse é o da dupla fenda. Esse experimento consiste num elétron que será lançado entre duas fendas e, ao atravessar uma delas, ele colidirá com uma placa-detector, localizada atrás das fendas. Este experimento é muito interessante porque ele mostra o caráter dual do elétron, ou seja, seu comportamento onda-partícula. Meu intuito não é provar que o elétron tem esse comportamento, mas, sabendo-se disso, mostrar o comportamento do sistema antes e depois do elétron atravessar a fenda. Antes de o elétron ser lançado, havia 50% de chance dele passar por uma das fendas, logo, havia uma função de onda composta por dois autoestados e, associado a eles, dois autovalores, com probabilidades iguais de transição para o elétron. Ao se chocar com a placa, o elétron define sua posição e, portanto, a função de onda que descrevia sua posição está colapsada. Da mesma forma, se um observador ficar acompanhando o experimento, a função de onda estará colapsada antes do elétron atravessar a fenda! Ou seja, sua função de onda que apresentava estado de superposição cai para o estado definido por apenas um autoestado e, portanto, um autovalor de módulo unitário. O interessante é que, para inúmeros lançamentos sem que o observador esteja monitorando o experimento, o padrão observado na placa é aquilo que se espera para interação entre ondas, nos casos de superposição e aniquilação.

Dessa forma, parece ser razoável atribuir um aumento da entropia do sistema ao colapso da função de onda de uma partícula, e isso mostra que o processo é irreversível, ou seja, a seta da evolução do experimento aponta apenas para uma direção nos casos de detecção de variáveis físicas de um experimento em Mecânica Quântica (detecções restritas ao princípio de incerteza de Heisenber).

Os acontecimentos da vida cotidiana parecem seguir a mesma lógica dos sistemas físicos abertos. Muitas vezes, uma decisão acarreta em diversas possibilidades de ação. Por isso, é realmente muito importante pensar com cuidado nas atitudes que se toma frente a determinadas situações, justamente porque geralmente o processo é irreversível e, assim, arrepender-se não é uma opção. Viver cada momento de forma única faz dele um desafio em que a física busca dar sentido às ações, mas que muitas vezes não conseguimos prever o que irá acontecer. Talvez seja realmente mais fácil agir pela emoção. Talvez.